Em outras cores

Já até sei o que você vai dizer. Vai acender a luz, me chamar de irresponsável, brigar pela quantidade excessiva de café que eu venho tomando e criticar a situação pós-nuclear do meu quarto. E eu nem ligo, eu gosto assim. Deixo essa zona só para você vir e fazer aquela cara de implicar comigo, enquanto eu morro de rir da sua tentativa frustrada de me fazer te levar a sério. E eu me pego aqui, rindo sozinha lembrando disso e olhando pro meu esmalte descascado e pensando em como você também odiava isso. Então eu aumento o volume mais um pouco só para não ter que ouvir cada pulo grotesco que o meu coração dá toda vez que a maldita janelinha sobe e eu penso que é você voltando para dizer que esqueceu de me dar boa noite. É que bateu uma saudade sabe, saudade de quando a gente vivia aquele absurdo da impossibilidade, esperando o telefone tocar para dividir o pranto risonho e devolver pro mundo o que eu não podia te dar. Daí que eu entendo o que você queria dizer fazendo aquelas coisas. A gente se agride só pra ter pelo que lutar. Algo em nós escolheu assim. E pensar que a gente correu tanto. Corremos tanto que acabamos chegando atrasados demais. E hoje vivemos assim, reféns dos rabiscos do nosso próprio amanhã. É, eu ando cansada. Cansada e confusa, por isso finjo que não me importo. Para não doer tanto como doeria se não fosse real. Acaba sendo muito mais cômodo e fácil renegar tudo e passar mais tempo do lado de fora, você entende? Sei que eu deveria me preocupar mais ao invés de admitir que você ta cansado de saber as coisas e pa. Me dá só um tempo. Eu só quero voltar logo para casa, pros meus pedaços anexados, meus rascunhos mal escritos e todas aquelas futilidades rotineiras e casuais que me fazem desgastantemente mais feliz. Daí a gente se encontra com calma. Preguiça ta impregnando tudo aqui dentro e os velhos planos vão aos poucos se desfazendo para logo mais se reestruturarem de novo. Meu ioga ficou na vontade, a tinta de cabelo nem saiu da embalagem e o meu guarda-roupa assim como o meu coração continua sufocantemente bagunçado. Mais eu juro que um dia eu arrumo isso tudo. Você vai ver. Porque o nosso limite é esse. As reticências. Você se ocupa com o meu desespero enquanto eu me empanturro satisfeita com a tua obsessão. E olha que a gente não se combina. Para falar a verdade a gente não tem absolutamente nada a ver. E é só por isso que eu te quero.

Corações reciclados

Era para ser temporário e já se vão quase um ano.
Tanto tempo e eu ainda continuo me adaptando (...) Tantas voltas para chegarmos exatamente no mesmo lugar onde tudo começou. De novo. E quantas vezes mais? Até quando? Até onde nos permitimos ser invadidos? Seria egoísmo demais pedir para que você dividisse sua culpa comigo? Eu pensei que talvez, eu poderia tentar se ao menos eu acreditasse. Mas você consegue ser previsível até quando tenta me surpreender. Então para. Para de tentar se justificar pelos atos dos outros, usando meus próprios argumentos contra mim e vai embora. Vai e não ouse voltar para fazer tudo dar certo de novo porque agora, agora eu estou dizendo não para mim também. Entre todos os seus vários disfarces, a frieza é a que menos combina com você. E certas mudanças são necessárias. MUDANÇAS, não substituições como você geralmente costuma fazer. Então vai. Vai e traga tudo de volta. Porque eu sinto falta mesmo, é da tua ausência.

Vitrines

Fora um dia frio.
Lá fora, a chuva continuava incessante e um vento entrou porta adentro, varrendo consigo 15 anos de sorrisos embaçados e lágrimas empilhadas numa caixa vazia. Ela distraída, olhava álbuns antigos e se embriagava com sonhos enquanto a madrugada desfazia-se impregnada de lembranças. Quase podia sentir o coração obstruído se amarrando, enquanto chorava calada embalando histórias antigas com palavras mal escritas. Talvez fosse só saudade contra-atacando por pura covardia, condenando inverdades inventadas que complementavam a pluralidade das suas desculpas improvisadas. Talvez sua estrela ofuscasse mesmo os holofotes e ela devesse deixar as lagartas do casulo morrer a tempo, antes que terminasse o dia. A verdade, é que às vezes para que consigamos suportar, é preciso disfarçar os desacertos e tentar novamente; porque não podemos desmarcar o acaso em cima da hora e o tempo, o tempo devolve nossas certezas com a mesma insistência em que mentimos para aliviar o impacto da queda.

ontem

Uma simples distração enquanto o sono não vem.
E as horas insistem em competir novamente com os ponteiros do relógio. É quase meia-noite e o sol ainda não se pôs. Não aqui dentro, quando me lembro do teu sorriso velho de fotografia congelada. Sorriso com brilho de estrela encardida.

E são tantos os jeitos de se fazer tudo, que um dia vai querer voltar e se arrepender, porque o mundo tem mil formas de fazer com que você volte atrás mais uma vez. Você se afasta e eu me arrisco a voltar. Eu rabisco uma canção antiga para você me incendiar e o alarme soa falso, ensolarado demais pra encerrar o nosso dueto. Porque quando as cortinas se fecham e você volta a ser o que era antes, os aplausos continuam te ameaçando. Transformando nossos arco-íris em pequenas escalas de cinza e branco. E saimos mais uma vez, ilesos. Brincando de cabra cega com os olhos abertos.

Eu só queria que você soubesse que eu não vou desistir. Os malvados precisam provar um pouquinho do próprio veneno às vezes. E Eu poderia quem sabe, começar provando o que você tem de pior.

pra muitos lados.

A verdade é que ainda há muita coisa em jogo. Mesmo que este já tenha se esgotado entre todas as nossas recompensas e colisões. E as nossas renitências continuam em sustento. Pendendo pros dois lados simultâneos, na mesma intensidade, transformando o nosso tudo em um breve resumo de glória. E só o que sobra ainda é probabilidade, pura estratégia de sorte. Às vezes quando se permite desamarrar os laços e repudiar a si mesmo, as coisas se evaporam e condensam-se, escoando a dor em forma de chuva pra lavar a alma e domesticar os resquícios do novo caos. E a gente acaba tendo que se emendar nos vácuos dos nós frouxos das próprias amarras, respondendo aos ecos dos próprios retrucos que devolvem os embates da mesma forma que foram impostos. Oclusos. E repetidos.